Sunday, November 14, 2010

Não é pelo vício da pedra,
por preferir a pedra à folha.
É que a cabra é expulsa do verde,
trancada do lado de fora.

A cabra é trancada por dentro.
condenada à caatinga seca.
Liberta, no vasto sem nada,
proibida, na verdura estreita.

Leva no pescoço uma canga
que a impede de furar as cercas.
Leva os muros do próprio cárcere:
prisioneira e carcereira.

Liberdade de fome e sede
da ambulante prisioneira.
Não é que ela busque o difícil:
é que a sabem capaz de pedra.”

JCMN.

O decreto da cegueira


Quando me acovardei além do que devia,
rasguei meus versos empoeirados,
pus fogo em meus poemas de alegria
e das palavras fiz mosaicos trancafiados.
Quando enlouqueci mais do que podia
Tirei minhas vestes pela rua,
Gritei mais alto que a agonia
E mostrei-me ao mundo, feia e nua.
Quando enxerguei além do que devia
Vi as cores e as flores do concreto
Vi a triste certeza que me movia
E fiz-me cega por decreto.

Saturday, November 13, 2010

Folhas do word

Vem do ecrã esse fascínio,
Essa vontade de te olhar?
Folhas brancas do Word, tabuladas,
Hipnóticas.
Mergulho na tua brancura,
Papel que não toco,
Enquanto me chama com teus inúmeros recursos.
Vem dos tubos dos raios catódicos
Teu poder de prender-me?
De me deixar mudo diante de ti e de mim?
Cavalgam os fantasmas na alma,
Mas meus dedos não se movem,
Alheios, cansados, fumando...
E tuas páginas sem fim,
Estão todas em branco.
Quantos enterês suportam essas folhas
Que se criam brancas sem cessar?
Passam correndo pelos meus olhos,
Clones brancos de esterilidade.
Nada há em ti, papel de mentira,
Que nem posso amassar.
Não te posso rasgar, nem te posso tocar.
Papel intangível. Maldição quântica!
Outrora te sentia, papel de verdade,
Por onde os dedos deslizavam tocando
Redes de celulose.
Agora, entre nós, essas teclas imundas,
Chamando dedos que não se movem.
Mas continuo, aqui, a te olhar,
Folhas brancas do Word... seguem brancas,
Fazendo-se virgens a cada delete.
Traiçoeiro sistema de elétrons.
Depois que o verbo partir,
Esgotado de tanto ser animus,
Encontra o des-animus e vai se render.
Não vai se fazer carne,
Vai se fazer fumaça
Vai embora diluir-se exausto.
O verbo é errante, move-se, gira,
Dispersa no ar, e vai embora
Deixando tudo mudo, estático.
O verbo não se deixa prender,
Não se satisfaz em cristais líquidos.
Quer voar, quer partir.
Verbo não vem de chip, nem de protocolos,
Não tem potencial que o limite.
Verbo é vento, vive solto,
E vai embora sem mim.
Vai embora sem ti,
folha do Word.

Não faço versos, luto com o ecrã.
E a luta vã prossegue em outros campos,
Do papel, antigo artefato sobre o qual se escrevia,
À pena, à lápis, à bic,
A luta vai se travar numa tela
Distante, fria, irreal.
Tento tocar as palavras e sinto elétrons;
Sinto poeira e um certo problema de aterramento.
Vejo palavras que vêm e palavras que se vão,
Não se sabe de onde nem para onde.

Thursday, November 11, 2010

"É preciso construir uma torre
uma torre azul para os suicidas
têm qualquer coisa de anjos esses suicidas voadores
qualquer coisa de anjo que perdeu as asas."

Wednesday, November 10, 2010

"Estou improvisando e a beleza do que improviso é fuga. Sinto latejando em mim a prece que ainda não veio."

Poeiras assopradas

Nunca me dei bem com as ciências exatas. Não havia de me dar bem com as ciências exatas.
Que dizer de como penso, se no tempo em que pensava, era tão infeliz.
Pinto, Recorto, Desfaço. E continua: mesma plantação de soja que transborda pela retina. E não quero ver.
Mas quando sonhei, e era futuro, o futuro era tudo que hoje me falta. Nunca vi mágicos anos chegarem.
Que dizer de como penso, se desse estado de insônia saíram - me tantos modos, tantas vidas, que queria poder contar. Mas não me dou bem com as palavras. Que dizer do romper de vidas que jamais foram minhas?
Amanhã, vou consultar meu guarda - roupa. Vai estar vazio. Vazio de vestes, de cores, de mim.
Guarda-roupa velho, mofado, apodrecido.
Tenho apenas esses dias de ausência. Nenhum adorno. Nenhuma vontade.
As Letras não suportam esses garranchos. Meus rascunhos estão por ai, sobre a mesa, para serem lapidados. Jamais os lapidarei.
As Exatas não suportam esses delírios. As deduções matemáticas estão por ai, sobre a mesa, para serem entendidas. Jamais as entenderei
O que espero ao abrir a porta: encontrar só mofo e escuridão com ácaros e pequenas baratas. Resta, o que não fiz pela ciência, e a obra literária rumo à lixeira.
São Carlos, agosto de 2001.

A internação

Sei que muitos falam que enlouqueci. Não me importo. Vozes eu ainda ouço à distânica, mesmo que não alinhadas em ondas; mesmo que dispersadas pelo vento. E aqui muito venta. A minha voz não é ouvida, mas por uma grande pena, também não é olvidada. Mais do que não ser ouvida, queria não mais ser lembrada. Ao menos, não podem me tocar, o que não canso de agradecer. Não podem me tocar, o que quer dizer que também não os toco. Uma Lei de Deus fala assim: se os toco, tocam-me; se me tocam, toco-os. E se a divina lei se cumprisse, eu os lepraria.
Alguns ainda me acenam. Posso ver a silhueta enegrecida de sombra, de braços erguidos, projetada à distância. Não lhes aceno. Prossigo acomodada num antigo banco de madeira, que ao sol escaldante, há anos resiste. Meus braços repousam, e nunca acenam. Talvez também me sorriem, mas risos e choros não se distinguem de onde os vejo. Silhuetas enegrecidas, se próximas, fariam resplandecer as lágrimas. Meu conforto é não vê-las, de onde, em repouso, as estou olhando.
De onde nunca sairei. De onde escuto ruídos e vejo sombras, de onde ninguém pode me tocar. Entre as duas margens do rio, atraquei meu barco à terceira, e aqui é o meu leprosário.